sexta-feira, 7 de março de 2008

0089) A arte dos sonhos (4.7.2003)




Eu estava num bairro distante em Campina, como se fosse Zé Pinheiro ou Odon Bezerra. Era a hora do por-do-sol, e eu estava parado, olhando na direção do oeste. 

O céu era de um azul que começava a esmaecer, e eu via um daqueles crepúsculos largos, horizontais, que Campina tantas vezes tem, com icebergs de nuvens, rubros e dourados, espalhando-se de ponta a ponta. 

Então, vinha uma nuvem diferente pelo céu. Todas as outras nuvens estavam paradas, como pirâmides à espera de que o Tempo acabasse de desfilar diante delas; mas esta nuvem vinha se movendo em trucagem de câmara-acelerada, vinha se enovelando e desenovelando, borbotando formas de dentro de si como um cacho de bolhas de espuma que um menino soprasse por um talo oco de mamoeiro.

A nuvem era diferente também por causa de sua cor, que era cor de madeira escura, madeira de móveis de igreja, madeira de estantes de farmácia antiga, madeira de biblioteca. Essa nuvem vinha passando pelo céu, como se fosse um redemunho que furtasse substância às outras nuvens em redor e desse uma coloração diferente a essa substância. 
Só então eu percebia que aquela nuvem era feita de madeira, mas uma madeira rápida, uma madeira que eu via mover-se e mudar como move-se e muda a madeira de uma árvore ao longo de vidas muito mais longas do que a minha. 

Eu ouvia vozes ao meu redor, e por elas eu percebia que ninguém estava olhando para o alto, somente eu. Eles podiam me ver, mas não olhavam para aquilo que eu estava olhando. Eu não via a mim nem a eles, se não iria perder a visão de como aquele anjo se formava no céu, vindo dar início a algo. Só que suas linhas começavam a ficar borradas, os traços perdiam a proporção, alongavam-se de um lado, desuneravam-se de outro. 


Quando ela foi chegando quase acima da minha cabeça, os raios do sol batiam de cheio sobre ela, e ela agora continuava da cor de madeira, mas uma madeira clara como chocolate, ou como aquelas raspas encaracoladas de madeira que um carpinteiro tira com a plaina.


Só que a câmara-acelerada me permitia ver as formas que ali brotavam. A nuvem era a escultura de um daqueles anjos de Aleijadinho que parecem suspensos no céu mesmo que a gente os esteja vendo pregados à parede. O anjo tinha cabelos encaracolados, vestes turbilhonantes, e empunhava uma trombeta de anunciar alguma coisa.


O anjo estava se desmanchando, porque a nuvem não parava. A forma final do anjo já tinha passado e eu tinha me distraído dela, porque estava escutando as pessoas ao meu redor. Daí a pouco nada mais de anjo, era só o tumulto de formas de madeira revoluteando céu afora, afastando-se por fim. 

E eu pensei, vindo acordando: Tudo passa, tudo é nuvem passando, fases da lua, curvas da vida, rodada de campeonato, pesquisa de eleição, gráfico da Bolsa, vendagem do livro, juros do cartão, os estandartes do triunfo, as nebulosas da depressão, tudo é momento, tudo é movimento, tudo são nuvens de madeira se desfazendo pelo tempo afora.






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