sexta-feira, 7 de março de 2008

0077) Se fosse fácil não tinha graça (20.6.2003)



Um dos mandamentos da criação artística é: “Se fosse fácil, que graça tinha?” Muitas vezes o artista é seduzido pelo prazer de encarar e vencer um desafio à sua habilidade, aos seus recursos. Em toda criação artística vigora um pouco desse “fator dificultante”. Não conheço um termo específico em português. Em francês se diz “contrainte” (pronuncia-se “contrent”), e quer dizer “constrangimento, embaraço, dificuldade”. Em inglês é “constraint”, com as conotações de “coação, coerção”.

Existem “constraints” que decorrem do próprio meio que está sendo empregado. O crítico Rudolf Arnheim demonstrou que a riqueza da linguagem do cinema nascia dos limites obrigatórios, insuperáveis, que o cinema tinha no início: imagem retangular e plana, ausência de cor, ausência de som, e assim por diante. Cor e som surgiram depois, mas a limitação retangular da imagem é uma coerção que não foi superada. É impossível mostrar tudo; a escolha sobre “o que mostrar” é sempre uma escolha estética.

Um grupo literário francês levou ao extremo o uso da “contrainte”: a Oulipo (“Ouvroir de Littérature Potentielle”). Georges Perec, por exemplo, escreveu um romance inteiro, La Disparition sem usar a letra “E”. Este feito já havia sido praticado pelo norte-americano Ernest Vincent Wright em seu romance de 1939 Gadsby, igualmente sem o “E” (que pode ser lido em: http://gadsby.hypermart.net/index.htm). Por que motivo um sujeito arranja tanto problema para si próprio? Ora, porque se fosse fácil não tinha graça.

Todas as regras relativas a rima e métrica, por exemplo, são exemplos de coerções desse tipo. O soneto tem inúmeras variantes, mas sempre no limite de 14 linhas. O hai-kai são três linhas, com 5, 7 e 5 sílabas. Dados os limites, cabe ao artista criar o máximo dentro deles. Soneto e hai-kai são exemplos de limitações que se consagram, viram um teste de habilidade, acabam se transformando num gênero de poesia. Cada poeta, contudo, pode, antes de começar o poema, propor a si próprio uma regra meio arbitrária, e obrigar-se a segui-la. A “terza rima” em que Dante escreveu a Divina Comédia e o modelo do romanceiro ibérico adotado por Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência são exemplos clássicos.

Como sabem os físicos, um gás só tem utilidade prática quando é comprimido. A mente dos poetas deve ser também uma coisa meio gasosa, meio propensa à dispersão e ao devaneio, e é preciso encaixotá-la, espremê-la, dizer-lhe: “Tu agora vai ter que escrever uma estrofe onde a primeira linha rime com a 4ª e a 5ª , a 2ª com a 3ª, a 6ª e a 7ª rimem com a última e a 8ª com a penúltima, e o acento em cada verso tem que ser na terceira, na sexta e na décima sílabas! Visse, rapaz?!” Parece encomenda de um doido pra outro. Mas começou gente a topar o desafio dessa “contrainte”, e temos aí o martelo agalopado, uma das maiores contribuições nordestinas á Poética Brasileira.




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