sexta-feira, 7 de março de 2008

0064) Nem tudo é canção (5.6.2003)



Anos atrás participei de uma dessas coletivas musicais que duram uma noite inteira. Cantores, poetas recitando, bandas, grupos folclóricos. Quem ia se apresentar antes de mim era uma velhinha parecida com Zabé da Loca, acompanhada por violas e percussões. 

Eu estava no camarim cheio, tentando afinar o violão, quando alguém avisou ao grupo, que já ia para o palco: “Três músicas, e sai, certo?” Eles concordaram. Quando afinei o violão, fui para a lateral do palco. Passaram-se dez, quinze minutos, e o grupo cantou o que me pareceram umas oito músicas emendadas. Alguém perguntou se eu estava impaciente, e dei a resposta que dou para 90% das perguntas que me fazem: “Por mim, tudo bem.” 

Quando o grupo fez uma pausa, quinze minutos depois, o locutor apossou-se do microfone, agradeceu a presença deles e me chamou. Ao cruzar por eles, vi que a velhinha vinha danada: “Disseram que era três, e a gente só tocou uma!” A uma dela durou mais de meia hora. 

O conceito fonográfico de “canção” é uma coisa meio estranha na Música Invisível Brasileira, a música anônima que se faz nos “recantos remotos do Brasil”, ou seja, nos 90% do Brasil em volta das grandes cidades. Nos folguedos populares, nos cocos, nas marujadas, nos brinquedos de bumba-meu-boi e cavalo-marinho, a gente percebe que ninguém está preocupado com uma canção com começo, meio e fim. Não tem aquela coisa de primeira parte, segunda parte, refrão, volta a primeira e encerra. 

Na música de pés descalços, existem temas instrumentais ou refrões vocais que são puxados por uma parte do grupo, e que servem de base para que qualquer pessoa do grupo encaixe fragmentos que tenham algum tipo de parentesco com a harmonia e o ritmo usados naquele momento. 

O excelente livro de Carlos Sandroni Feitiço Decente analisa as origens do samba carioca, comparando o samba semi-folclórico que se fazia na época de Donga, e o samba urbanizado dos bambas do Estácio. Quando o “Pelo Telefone” foi gravado, um samba não tinha formato definido: era um refrão ao qual se agregavam partes com pouca relação musical e poética entre si. Não eram canções no sentido que damos hoje a essa palavra. Eram agregados poético-musicais, produzidos por associação livre de idéias, com fragmentos recordados ou improvisados pelos participantes do folguedo. 

Hoje, no Ocidente, a palavra “canção” tem um perfil nítido: há uma melodia, uma letra e um arranjo, numa estrutura composta de partes bem delimitadas, e tudo isto dura de dois e meio a três e meio minutos. É um produto industrial, criado a partir das monstruosas, barrocas, frankensteinianas “músicas” folclóricas que duram horas e só acabam se o locutor interromper o grupo. 

Mas quando coloco um CD de música oriental ou africana, de Nusrat Fateh Ali Khan ou de Ali Farka Toure, chega tenho um susto de prazer ao ver a imensa liberdade com que as canções deles parecem produtos de associação livre de idéias sem formato obrigatório. Zabé da Loca perde.








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