sexta-feira, 7 de março de 2008

0058) No meio do redemunho (29.5.2003)




(ilustração: Salvador Dali)

O redemoinho, ou redemunho, como dizemos por aqui, é em várias culturas um símbolo do diabo. Todo mundo deve lembrar a frase mais famosa de Grande Sertão: Veredas: “O diabo na rua, no meio do redemoinho...” Em nossa cultura popular, o redemunho é também o local onde se esconde o Saci, e no livro clássico de Monteiro Lobato é no meio de um redemunho que Pedrinho, com a ajuda de uma peneira, ou urupemba, consegue capturar o Saci. Vale lembrar que é uma urupemba “de cruzeta”, com duas varetas cruzadas para reforçar a estrutura, e que é devido ao poder dessa “cruz” que o diabinho não consegue escapar.

Um redemoinho está para o ar como a onda está para o mar. Ele não é feito de matéria, e sim de movimento da matéria. No caso da onda, quem se aproxima da praia não é a água, é o movimento que a água está fazendo. Cada parte daquela água se eleva e depois volta a se abaixar, ficando mais ou menos onde estava; é a elevação que vai se movendo lateralmente, rumo à areia. Algo parecido ocorre com o redemunho. Se você prestar atenção, vai ver que o redemunho vem se aproximando: é um rodopio de areia. Ao passar por um trecho de mato ele vira um rodopio de folhas secas e gravetos. Se houver por perto um monte de palha, ele vira um rodopio de palha em movimento.

A gente vive esbarrando no lado material das coisas, e esquece que elas não são somente matéria, são feitas de processos dinâmicos só visíveis através da matéria que movimentam, assim como um redemunho só é visível através dos grãos de areia que bota para rodopiar. A coisa mais interessante que as ciências físicas fizeram nos últimos cem anos foi voltar a nossa atenção para os padrões, as estruturas, os sistemas organizados e dinâmicos onde a matéria só entra, por assim dizer, com o enchimento. Tais estudos levaram ao exagero oposto, hiper-estruturalismos que foram se tornando tão rarefeitos a ponto de não conterem mais idéia alguma, como uma onda sem água; mas paciência, são as idas e vindas do pêndulo do espírito.

Uma pedra não é uma coisa parada, é um turbilhão de átomos. Uma flor é uma explosão: basta vê-la filmada com câmara acelerada. A Via Láctea onde rodopiamos é possivelmente uma espiral de matéria gasosa e luminosa que gira (como o sangue de Janet Leigh girava no ralo do banheiro em Psicose) até ser sorvida pelo buraco negro bem no centro desta nossa galáxia. Tudo é redemunho. A Bíblia diz: “Tu és pó, e ao pó retornarás.” Pois digo eu, pedindo licença à Bíblia: “Tu és pó, mas és também ciclone. Tu és um turbilhão de carne, sangue e ossos; e és um tornado de palavras e ações, e vais em teu trajeto vida afora, espalhando esse tumulto que se chama vida. Um dia os grãos de que és feito repousarão de novo no chão liso, mas ficará de ti o desenho da dança que criaste com teus ditos e teus feitos; restará de ti o rastro que escreveste na areia, seja aqui ou nas planícies do planeta Marte. Tenho dito.”




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