sexta-feira, 7 de março de 2008

0054) Três tipos de romance (24.5.2003)

Existem romances de idéias, romances de linguagem e romances de narrativa. Muitas vezes, quando saímos dizendo que lemos um bom livro, é porque as idéias do livro nos conquistaram. Nossa admiração por elas nos leva a perdoar, muitas vezes, uma narrativa complicada, ou personagens sem brilho, ou uma linguagem vacilante. São as idéias, e não a linguagem (independentemente de ser boa ou má), que conquistam os leitores de livros como “A Náusea” de Sartre, “Admirável Mundo Novo” de Huxley, “O Jogo da Amarelinha” de Julio Cortázar, “A Mãe” de Górki.

Há outra literatura onde o que conta é a linguagem: porque é ousada e imprevisível, ou porque é uma recriação de um modo clássico; porque é criativa, ou porque é vulgar, ou outro porque é erudita... Quem nos conquista nesses livros é a linguagem, a sonoridade, o lapidar das frases. As idéias destes livros vêm a reboque da linguagem, são consequência dela. É o que acontece em obras como “Finnegans Wake” de Joyce, “Os cantos de Maldoror” de Lautréamont, os romances-vitrais de Osman Lins (“Avalovara”, “A Rainha dos Cárceres da Grécia”)... É a prosa deles que nos seduz, a aventura verbal, as modulações das letras, dos sons, dos ritmos. Este artesanato verbal pode ir, também, numa direção minimalista, seca: “O Estrangeiro” de Camus, “São Bernardo” de Graciliano.

O escritor que lida principalmente com idéias está agindo num nível "macroscópico" da literatura; o que se concentra na linguagem trabalha num nível "microscópico", lidando com as estruturas mínimas. No meio dos dois, trabalhando com estruturas intermediárias, fica o terceiro tipo, o Contador de Histórias, o escritor cujo forte é o encadeamento de peripécias e de tipos. Este tipo de literatura resiste a qualquer tipo de manipulação editorial: adaptações, condensações, traduções que "enxugam" o original, versões infantis ou em quadrinhos, como acontece com clássicos que hoje são mais conhecidos em suas versões para jovens: as “Viagens de Gulliver”, “A Ilha do Tesouro”, as “Mil e Uma Noites”, o “Robinson Crusoe”... São narrativas que resistem a todas as filtragens e deformações. Histórias marcantes são o ponto forte das obras de Dickens, Kafka, Garcia Márquez, H. G. Wells.

E existem os livros, felizmente não tão raros assim, que conjugam as três coisas: idéias inesgotáveis, magia verbal, história que ninguém esquece. Temos aí “Os Sertões” de Euclides, temos “Dom Casmurro” de Machado, temos a obra de Proust, temos o “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. Os três elementos também surgem em obras recentes como “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, “Memorial do Convento” de Saramago, na saga “O Senhor dos Anéis” de Tolkien, “O Arco-Íris da Gravidade” de Thomas Pynchon. São livros que conseguem ser amados por leitores de diferentes temperamentos, que em outras vezes discordam das escolhas recíprocas, mas, nesses casos, cada um consegue encontrar naquela obra o que lhe dá prazer na leitura.

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