sexta-feira, 7 de março de 2008

0024) Um filme não é só um filme (19.4.2003)




A literatura sobre o Cinema vem produzindo obras que exploram o Cinema como matéria-prima para a geração de novas histórias. Não me refiro aos livros que descrevem o dia-a-dia de uma equipe de filmagem ou algo assim, mas a obras literárias que interferem em obras cinematográficas pré-existentes, alterando ou ampliando sua rede de significados. 

Esse tipo de releitura ou de reescritura acaba sempre sendo chamado de “borgiano”, por ter sido Jorge Luís Borges quem explorou de forma mais inovadora o chamado ensaio ficcional, a obra de ficção disfarçada em ensaio. 

Borges, contudo, apesar de ter sido crítico de cinema, não produziu ensaios ficcionais sobre filmes. Produziu, no entanto, os ensaios biográficos de História Universal da Infâmia (1935), onde ele reconta, de maneira distorcida, a vida de alguns personagens obscuros da História moderna. (Sob inspiração confessa de Marcel Schwob e suas Vidas Imaginárias, de 1896.) 

Um beijo é só um beijo, de João Batista de Brito (João Pessoa, Manufatura, 2001) é bem descrito pelo seu subtítulo: “Minicontos para Cinéfilos”. O autor cria pequenos monólogos onde personagens de filmes (que vão de Paris, Texas a A bela da tarde, de Veludo azul a O último tango em Paris) recontam ao seu modo o que ali ocorreu, e o fazem de tal forma que só ao longo da leitura torna-se claro de que filme e de qual personagem se trata. 

Os contos procuram preencher os interstícios do filme; sem alterar nada do que nele ocorreu, usam o ponto-de-vista do personagem escolhido para reorientar nossa leitura e, às vezes, nos fazer ver um outro filme por trás do primeiro. 

Os minicontos de João Batista de Brito lembram o labirinto de mini-narrativas de Suspeitos de David Thomson (1985), onde dezenas de filmes norte-americanos são relacionados entre si através de uma complexa trama, como se todos pertencessem ao mesmo universo, fossem fragmentos de uma única história que só agora está sendo contada. 

Realidade e ficção não mantêm uma relação bipolar, onde A é A, e B é B. À medida que mais e mais obras de ficção (cinema ou literatura) vão sendo absorvidas pelo tecido cultural, o que temos são camadas sucessivas de ficção se depositando umas sobre as outras. As camadas mais antigas, que vêm sendo assimiladas há mais tempo, passam a fazer parte tanto da “vida real” quanto da ficção. 

Refletir sobre a nossa realidade visível, portanto, é refletir sobre um sambaqui de elementos ficcionais que estão misturados a ela como café ao leite. Ficções metalinguísticas como as de Brito ou Thomson se valem da capacidade do leitor para considerar provisoriamente como real o mundo diegético do filme, o universo de fatos e personagens proposto por aquela história. Tornando mais real a ficção, elas nos ajudam a ver o quanto existe de ficção nesta realidade que muitas vezes acreditamos ser concreta, objetiva, material, não-contaminada por nossa imaginação.





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